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Em livro de 2003, Zilda Arns como foi a criação da Pastoral da Criança |
A médica Zilda Arns, morta no terremoto ocorrido no Haiti nesta semana, foi responsável por criar a Pastoral da Criança, em 1983.
No livro "Depoimentos Brasileiros: Zilda Arns Neumann" (Editora Leitura, 2003), ela conta como a entidade foi construída e como chegou aos 218 mil voluntários que trabalhavam para a rede, até a publicação da obra.
Presente, até então, em 3.616 municípios, a Pastoral da Criança acompanhava cerca de 1,6 mi de crianças e 79,5 mil gestantes e conseguiu reduzir a mortalidade infantil a níveis impressionantes nos locais onde atua.
Confira abaixo um trecho extraído do livro.
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A Pastoral da Criança Esta é uma história de muito amor, garra, ações concretas, dificuldades e esperanças. Uma missão de fé e vida. Tudo começou em 1982, numa reunião sobre a paz mundial, da Organização das Nações Unidas (ONU). O então diretor executivo do Unicef, Sr. James Grant, convenceu meu irmão, Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo de São Paulo naquela época, de que a Igreja poderia ajudar a salvar a vida de milhares de crianças que morriam pela desidratação, se ensinasse às mães a preparar o soro oral.
Voltando ao Brasil, Dom Paulo me telefonou falando sobre essa ideia e perguntou-me se eu aceitaria pensar em como isso poderia se tornar realidade. Eu lhe falei de outras ações e da prevenção da diarreia. Eu era viúva há cinco anos, meus cinco filhos já estavam crescidos, Rubens e Nelson estavam na Universidade e Sílvia, a mais nova, tinha 10 anos.
Tínhamos o hábito de fazer vitamina todas as noites, os cinco filhos à minha volta, na cozinha; procurava estar ao lado deles em todos os momentos possíveis. Aquela noite, que sucedeu ao telefone de Dom Paulo, foi muito especial. Lembro-me do que lhes disse: "Hoje, a mãe vai fazer um café preto para não ter sono, para refletir e elaborar um plano sobre como a Igreja poderá salvar milhões de crianças do mundo, com trabalho feito na comunidade." Mostraram-se interessados e foram dormir. Eu me concentrei. Estava sentada na mesa da copa e rezei para o Espírito Santo me inspirar. Pensava em como começar um trabalho para atender tanta gente. Esse trabalho feito pela Igreja deveria ser altamente replicável, barato, atraente e impulsionado pelo amor fraterno.
Busquei as lembranças de minha experiência em Forquilhinha, onde minha mãe, Helena, era agente comunitária. Refleti também sobre a minha experiência como pediatra no Hospital de Crianças Cezar Pernetta, como médica e depois diretora de postos de saúde das periferias de Curitiba e mais tarde de toda a assistência Materno-Infantil no Estado. Qual a metodologia a ser adotada para fazer com que cada mãe aprendesse coisas simples, que prevenissem a morte e fossem importantes para o desenvolvimento de seus filhos?
As ações básicas de saúde e nutrição, eu as tinha todas na cabeça, mas como fazer para que chegassem às famílias pobres? Sendo um trabalho da Igreja, deveria ter um verdadeiro espírito missionário, de amor ardente que não espera, mas que vai ao encontro daqueles que mais precisam. Eu conhecera bem, nesses 27 anos de dedicação profissional, os problemas das ovelhas sem pastor, as mais desgarradas - a exclusão social.
A multiplicação dos pães
Surgiu-me a ideia de seguir a metodologia que Jesus aplicou no episódio do milagre da multiplicação de cinco pães e dois peixes, que saciaram a fome de 5 mil homens, como narra o Evangelho de São João. Os discípulos disseram ao Mestre Jesus Cristo: "É melhor que o povo se vá, porque está chegando a noite e estão com fome". Ele disse: "Daí-lhes vós mesmos de comer". "Como?" Só tinham dois peixes e cinco pães. O Mestre mandou que o povo se organizasse em comunidades de 50 ou 100 pessoas sobre a relva verde. E pediu que os discípulos trouxessem o que tinham. Jesus abençoou os cinco pães e os dois peixes e mandou distribuí-los entre o povo; depois, mandou verificar se todos estavam satisfeitos, e ainda sobraram 12 cestos de restos de comida. (Jo 6, 1-15)
Adaptei essa metodologia do milagre ao projeto, ao organizar as comunidades e identificar líderes que, capacitados e com o espírito de fraternidade cristã, multiplicavam o saber e a generosidade nas famílias vizinhas. "Daí-vos vós mesmos de comer", não esperem sempre pelos outros, pelo governo. Muitos problemas poderiam ser resolvidos pelas próprias mães. Mas eu me questionava, ainda: "Como líderes analfabetos poderiam salvar vidas, tendo o Sistema de Saúde como referência?" Quantas doenças poderiam ser prevenidas pela informação e pelo apoio fraterno de líderes comunitários! Tinha certeza de que não existia nada que promovesse mais a inclusão social do que a democratização do saber e da solidariedade. Eu havia atendido, como pediatra, tantas mães analfabetas e elas aprendiam a cuidar de seus filhos. Perguntava-me: "Como líderes analfabetos poderiam ser estimulados a multiplicar o saber?" Tinha certeza de que, com a graça de Deus, a gente se disporia a achar os caminhos. As lideranças, num processo de evangelização e de promoção continuada, seriam abençoadas e fariam o milagre da multiplicação do saber e da própria solidariedade humana.
Tinha certeza de que reduziria a mortalidade infantil, a desnutrição e a violência familiar com a educação das mães e das familias. Lembrava-me de que, quando atendia no ambulatório do Hospital César Pernetta, as mães diziam: "A senhora explica bem". Sentia seus olhos e ouvidos atentos e emocionados, porque, quase sempre, era a primeira vez que alguém lhes ensinava a cuidar dos filhos.
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A Pastoral, hoje
Esse trabalho fantástico é realizado em todo o Brasil, voluntariamente, por milhares de pessoas; mais de 218 mil voluntários engajados nessa rede de solidariedade humana que une Fé e Vida. São as líderes e os líderes comunitários, as equipes de coordenação dos Estados, dioceses, áreas e paróquias, que estão mudando a cara do nosso Brasil. A essa história de sucesso foram sendo incorporadas novas e importantes ações complementares, como: Geração de Renda, Alfabetização de Jovens e Adultos, Brinquedotecas Comunitárias, Segurança Alimentar, Saúde Mental Comunitária, Odontologia para Bebês e Controle Social das Políticas Públicas por intermédio de conselhos.
Essa grande rede de solidariedade humana se expandiu por todo o Brasil e hoje se encontra presente em 3.616 municípios, acompanhando cerca de 79 mil e 500 gestantes e mais de 1 milhão e 630 mil crianças e 1 milhão e 200 mil famílias pobres. A média nacional é de 12 crianças por líder; mais de 90% dos líderes comunitários são mulheres e pobres.
Os pontos-chave do sucesso da Pastoral da Criança estão, principalmente, na motivação constante para a mística da fraternidade; na fidelidade aos seus objetivos; no sistema de capacitação continuada de seus agentes; nos materiais educativos; na participação das mulheres; na atuação dos milhares de líderes comunitários como agentes de transformação social; além de mais de 7 mil equipes de coordenação, capacitação e acompanhamento que atuam nas microrregiões do País, nas dioceses, para garantir a qualidade das ações.
Três instrumentos básicos são utilizados nas comunidades para multiplicar o saber e a solidariedade humana entre as famílias: 1º) visita domiciliar mensal às famílias pobres; 2º) o Dia do Peso, que é celebrado, mensalmente, em mais de 32 mil comunidades; 3º) a reunião mensal de líderes para a análise dos indicadores de impacto e estudo de estratégias para superar as dificuldades. O custo financeiro da Pastoral da Criança é de menos de meio dólar por criança ao mês.
Há muitos anos, o Ministério da Saúde é o principal financiador da Pastoral da Criança, com cerca de 70% das verbas. O Ministério da Educação colabora com o Programa de Alfabetização de Jovens e Adultos. A Rede Globo de Televisão e o Unicef, por intermédio do programa Criança Esperança, são os maiores parceiros não-governamentais da Pastoral da Criança. A Igreja é responsável pelo apoio logístico e pela mobilização da rede de voluntários. Empresas e doadores estão crescendo nessa ajuda à Pastoral da Criança.
Quando iniciei a Pastoral da Criança, em 1983, sabia que se tratava de um grande desafio: no Brasil, um país do tamanho de um continente, com 8.511.864 km² de extensão e, na época, com cerca de 150 milhões de habitantes, mais da metade da população vivia em nível de pobreza e boa parte, na miséria absoluta. Frequentes migrações internas, concentração de riqueza, dívidas externa e interna ampliavam a desordem social e política. Mas toda essa problemática convivia com o sonho partilhado por muitos de ver a transformação acontecer. Hoje, 20 anos depois, mais de 218 mil brasileiros sonham juntos e estão mudando a situação de milhares de famílias e crianças em todo o Brasil.
A Pastoral da Criança do Brasil é apontada como uma das mais importantes organizações comunitárias, em todo o mundo, a trabalhar nas áreas de saúde, nutrição, educação e cidadania da criança, desde o ventre materno até os 6 anos de vida, e de prevenção da violência no ambiente familiar, envolvendo necessariamente as famílias e comunidades. Nas comunidades em que está organizada, a mortalidade infantil chega a ser inferior à metade da média nacional. Segundo dados recentes do IBGE, para cada mil crianças nascidas vivas no Brasil, 29,6 morrem antes de completar um ano. Em 2002, nas comunidades com Pastoral da Criança, esse índice foi menor do que 14 mortes em cada mil crianças nascidas vivas.
De maneira sistemática e organizada, desenvolvendo a solidariedade humana e a multiplicação do saber, as comunidades são capazes de se tornar agentes de sua própria transformação. É desta maneira, formando redes de solidariedade humana e procurando somar esforços, que tem conseguido a inclusão social.
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"Zilda Arns Neumann"Autor: Zilda Arns Neumann
Editora: Leitura
Páginas: 152
Quanto: R$ 28,00
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha/ult10082u679943.shtml
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